sim,
estamos aqui diante do espelho. o que vemos? um corpo cheio de órgãos. um
fenômeno de processos sistemáticos e necessários à vida. mas de formas
impostas, hierarquizadas, organizadas para extrair trabalho útil. um corpo que
nos é dado. é nele que transportamos aquilo que chamamos de “eu”. é uma máquina
que funciona para a produção, que lhe foi dada uma utilidade, que foi amarrado
dentro de uma lógica capitalista, que foi preso e tornado fraco, infeliz. o
clipe de mirror tenta capturar a
sensação absurda de fragmentar o corpo, pois só assim podemos lhe dar outro
sentido. a personagem que povoa as imagens quer derrubar o corpo construído,
experimentar um corpo novo. a personagem do clipe está presa nesse dilema: como
descobrir o corpo? através da experimentação de novos movimentos, afetos,
gestos, pontos de vista, novas sensibilidades. ela cria novos reflexos, novas
maneiras de povoar o mundo; brinca com fogo, um mastigar que não é apenas o
ruminar automático do produto industrializado, mas a mordida real, em busca da
vontade ancestral, instintiva, humana, desejante. ela recria maneiras de
atravessar certos caminhos, anda no escuro, deita no asfalto, relembra,
paralisa, dança. é uma questão de vida ou morte, de busca, de desconstrução. o
olho não pode apenas passar sobre a página do livro: é preciso cheirá-lo,
lambê-lo, tocá-lo com o corpo. a mão não pode ser apenas para assinar os
contratos, a boca não serve apenas para impor ideias, os pés podem aprender o
ritmo musical. olhamos o espelho e vimos um corpo subordinado, objetivo,
servil, mero veículo da identidade. um corpo cansado. está paralisado diante
das luzes dos parques, das telas, das propagandas, da informação acelerada pelo
capitalismo artístico transestético. está saturado. a vida acompanha este
cansaço, que significa obediência, que nos tira o tempo para criar. o corpo
precisa rachar, precisa ruir. o próprio corpo, antes da voz, diz: basta. e
racha. escapa à lógica. é preciso. só assim poderá se reconstruir. das suas
rachaduras nascerá um novo corpo. uma nova identidade. trata-se do corpo
desfragmentado. do corpo que não é ninguém. que são muitos. que foge do
universal. que nega a verdade com v maiúsculo. um corpo estranho. sem medo da realidade.
https://www.youtube.com/watch?v=nLkB5YKCqC8
ficha
técnica:
direção: augusto pereira e lucas quoos
atriz: renata kellermann
maquiagem: josiana bettin
edição, efeitos e finalização: augusto pereira
realização: marinero filmes e madame frigidaire
gravadora: gop tun records
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